segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Abrigo

Não existem mais lugares seguros fora
A segurança agora mora em mim
Dentro de mim
No fundo de mim ela tem lugar em uma casinha iluminada pelo sol
E uma cama fofinha
Com luz laranja
O sol é de manhã ou fim de tarde
E a noite da pra ouvir os grilos
E de manhã os passarinhos
Uns latidos ocasionais
Mas sem gritos de galinha d'Angola
As manhãs são longas
Cheiro de café
As noites de sono tranquilo
Cheiro de chuva
É a casa que eu carrego
Pra onde eu sempre posso voltar
Quando o cansaço bater
e for preciso descansar

Eu transito em meio as sombras
A minha volta tem um tanto de escuridão
Mas quando você acostuma os olhos,
consegue ver os contornos do mundo

Eu ando nas sombras mas não estou presa aqui
Escolhi estar
Preciso estar
Periodicamente
Porque pertenço a este mundo
E este mundo sou eu
Também



Tem um trecho do livro "Quem é você Alasca?" daquele cara que escreveu "A culpa é das estrelas" que as pessoas sempre compartilham no Facebook. Ele diz "se as pessoas fossem chuva, eu seria garoa e ela tempestade". Se eu fosse chuva seria chuva de verão. Dessas de fim de tarde que depois de um dia de muito calor, vem e refresca. E ainda traz o brinde de um arco íris e um tempinho a mais de sol do horário de verão. Eu amo o horário de verão. É que eu nasci no verão e amo fazer aniversário. E ver a chuva chegando. E o sol saindo depois. Ontem choveu e fez sol. Ao mesmo tempo. Mas não consegui achar o arco íris. Quem sabe hoje?

Sobre lembranças

Eu lembro que meu primo caçula tinha muita dificuldade em tomar sorvete. Seja de palito ou casquinha ele sempre derretia, pingava e sujava tudo. Ele não tinha a agilidade necessária porque o sorvete exige agilidade. Acho que as pessoas que gostam de sorvete são aquelas mais vorazes, as que tem pressa. Senão ele acaba virando uma água choca. Sorvete, assim como pão francês e Grecin 2000 me lembram meu vô Zé. Ele era uma pessoa bastante peculiar. Sempre comprava picolé de saladinha e minha vó reclamava que ninguém gostava. E pão queimadinho. Todo mundo gostava de pão branco, mas ele não. Minha vó examinava os pães quando ele trazia, antes de servir na mesa. As pessoas tem manias muito bizarras, mas é incrível como as suas manias não são bizarras pra você. Só as manias alheias que são. Eu tenho mania de falar antes de dormir. Lembrar mil coisas que me lembram outras mil coisas e aquela música daquela novela que passava quando eu tinha 8 anos. Eu e meus irmãos fazíamos isso sempre. Eu fazia isso com minha companheira de quarto na faculdade. Com o namorado, muito. "Gica, quando eu quiser que você fale é só eu dizer que vou dormir, né?" É. Eu sempre demorei pra dormir. Uma criança insone. É engraçado que eu nunca dei trabalho por isso. Nao acordava os pais. Não me queixava. So ficava pensando quietinha ou conversava quando tinha companhia. Hoje em dia eu alugo minha companheira de quarto as vezes ou as amigas que mesmo longe estão conectadas no celular. Mas todo mundo dorme uma hora. Eu também. Mas eu sempre sou a última a dormir.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Sol

Eu gosto das manhãs. Mas não de acordar muito cedo. E nem de trabalhar cedo. Eu gosto das manhãs de preguiça. Do sol da manhã. De enrolar pra levantar da cama. De tomar café. De caminhar sem pressa. Caminhar sem pressa de manhã. Viver sem pressa de manhã. Viver sem pressa. Sem correr. Eu gosto de caminhar. De reparar. Sem pressa. Eu gosto de ser. Sem pressa.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Sobre cheiros

Eu sou sensível a cheiros. Quando criança eu só dormia com a cheiro da minha roupa de cama. O meu cheiro. Mais tarde eu percebi que todas as pessoas tem um cheiro e que eu gostava delas a partir daí. Tem cheiros que eu gosto e permito que adentrem a minha vida e outros eu abomino logo de cara porque me causam repulsa instantânea. Eu posso até forçar simpatia, mas nunca vou permitir que passe do meu hall de entrada.
Porque é o cheiro que diz sobre a confiança. E não é aquela confiança de saber que fulano tem bom coração. É uma confiança primordial. Um lance meio instintivo, animal. Outro dias duas amigas me contaram que um conhecido atribui cores às pessoas pelos nomes. As letras e os tamanhos dos nomes tem cores correspondentes. E assim ele as classifica. Eu sinto cheiro. E o cheiro traz conforto ou desconforto. E meu olfato é extremamente sensível. Por isso os cheiros artificiais me incomodam tanto. Perfume quase não uso. Hidratantes, óleos e sabonetes, todos precisam passar pela exigência do meu nariz. e os sabonetes precisam passar despercebidos porque o banho, assim como a cama, precisa ser neutro. O banho é minha casa. O cheiro é minha casa. A casa eu reconheço pelo cheiro. E saudade grita através dele também. A saudade tem cheiro.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Os três cabelos de ouro


Hoje eu abri o livro e estava exatamente neste conto. Achei que valia a pena publicar.

"Uma vez, numa noite escuríssima e trevosa, o tipo de noite em que a terra fica negra, as árvores parecem mãos retorcidas e o céu é de um azul-escuro de meia-noite, um velho vinha cambaleando pela floresta, meio às cegas devido aos galhos das árvores. Os ramos arranhavam seu rosto, e ele trazia um pequeno lampião numa das mãos. A vela dentro do lampião tinha uma chama cada vez mais baixa. O homem tinha os cabelos amarelos e compridos, dentes amarelos e rachados e unhas amarelas e recurvas. Ele andava todo dobrado, e suas costas eram arredondadas como um saco de farinha. Sua pele era tão vincada que caía em folhos do seu queixo, das axilas e dos quadris.

Ele se apoiava numa árvore e se forçava a avançar; depois se agarrava numa outra para avançar mais um pouco. E assim, remando desse jeito e respirando com dificuldade ele ia atravessando a floresta.

Cada osso nos seus pés ardia como fogo. As corujas nas árvores piavam acompanhando o gemido das suas articulações à medida que ele seguia pelas trevas. Muito ao longe, tremeluzia uma luzinha, um chalé, um fogo, um lar, um local de descanso; e ele se esforçava na direção daquela luz. No exato instante em que chegou à porta, ele estava tão cansado, tão exausto, que a pequena chama no seu lampião se apagou e o velho caiu porta adentro desmaiado.

Dentro da casa, uma velha estava sentada diante de uma bela fogueira e ela se apressou a chegar até ele, segurou-o nos braços e o levou mais para perto do fogo. Ela o abraçou como uma mãe abraça o filho. Ela se sentou na cadeira de balanço e o embalou. E ali ficaram os dois, o pobre e frágil velhinho, apenas um saco de ossos, e a velha forte que o embalava.

— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. Ela o embalou a noite inteira e, quando ainda não havia amanhecido mas estava quase chegando a hora, ele estava extremamente renovado. Ele era agora um belo rapaz, de cabelos dourados e membros longos e fortes. Mas ela continuava a embalá-lo.

— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. E quando a manhã foi se aproximando cada vez mais, o rapaz foi se transformando numa linda criancinha com cabelos dourados trançados como palha de milho.

No momento exato do raiar do dia, a velha arrancou bem rápido três fios da linda cabeça da criança e os jogou nos ladrilhos. Eles fizeram um barulhinho.

Tiiiiiing! Tiiiiiiing! Tiiiiiiiiing!

E a criancinha nos seus braços desceu do seu colo e saiu correndo para a porta. Voltando o rosto por um instante para a velha, o menino deu um sorriso deslumbrante, virou-se e saiu voando para o céu para se tornar o brilhante sol da manhã."

ESTES, C. P. A ciranda das mulheres sábias. Rocco, 2009.