segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Desenlace


Ele desamarrou a corda e disse:
- Vai. Você precisa ir.
- Ir? Por que? Eu não quero ir.
- Você tem que ir. Eu também.
- Mas a sua corda ainda tá amarrada. Tá vendo?
- Tá. Mas eu vou desamarrar. To vendo aqui como.
- Eu não quero ir sozinha. Não consigo. Vou ficar aqui esperando você. Eu posso ajudar.
- Você não pode me ajudar. Eu não posso te ajudar. Você tem que ir agora.
Ela hesitou. Tinha muito tempo que não enfrentava o mar sozinha. E a corda dele parecia muito bem amarrada. Reparando bem os nós estavam bastante apertados. Ela era uma especialista em desatar nós, até daquelas correntinhas finas que se embromavam nas gavetas. Dos novelos de lã do tricô da mãe. Era um passatempo. Uma habilidade. E se ele não conseguisse sozinho? Aquele nó com toda certeza era bem difícil de desatar. Resolveu então deixar pistas. Escreveu cartas, deixou vestígios. Muitas dicas sobre como soltar nós. E foi jogando tudo no barco dele. Mas o barco dela ia aos poucos se afastando, já que em meio a preocupação de fabricar as pistas, ela esqueceu de amarrar seu nó de novo no cais. Então teve que arranjar outros meios de enviá-las. Colocou cartas em garrafas e quando as garrafas não pareciam mais seguras, pois a distância aumentava, arranjou ajuda com golfinhos e tartarugas mensageiras. Tinha muito medo de que ele ficasse preso ali, sem conseguir soltar o maldito nó. Pra sempre.
Com o tempo ela foi tomando gosto pela escrita. E o barco foi se afastando, quase não dava pra enxergá-lo. Na verdade não dava. mas ela sabia que ainda estava lá. Ele mandava notícias de quando em quando pelos mensageiros. Elas não eram muito animadoras. Pelo que parecia ele tinha conseguido se enrolar ainda mais. E começava a ter noção da dificuldade que seria a empreitada. Ele tentava soltar mas acabava com as mãos machucadas e desistia.
Ela não sabia como ajudar. Parece que ele não estava conseguindo decifrar as pistas. Mas como? Estava tudo ali, tão explicadinho. Como ele não entendia?
E conversando com os golfinhos e as tartarugas que traziam as cartas, descobriu que os nós são diferentes pra cada pessoa. As suas instruções não serviam pra ele. Ele só havia conseguido desamarrar o nó dela, porque não havia nó. Era um lacinho, desses que puxando se dissolve facilmente. As pistas eram então inúteis para isso. Mas pensando bem, poderiam ser muito preciosas depois que ele descobrisse como se soltar, porque contavam muito sobre como viver no mar.
Assim seu coração foi ficando mais calmo. E a calma fez com que ela percebesse como o mar é bonito e quantas descobertas ela fez.
Agora já não mandava cartas, mas anotava tudo que achava interessante. Um dia as ondas poderiam trazer aquele barco e tudo estaria ali, documentado, pra ele ler quando for a hora.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Estava eu aqui analisando meu mapa astral - coisa que ando fazendo muito ultimamente - e cheguei a uma conclusão curiosa.
Eu que achava que era muito mais ar que qualquer outro elemento descobri que apesar de eu ter sol e ascendente em signos de ar, fazendo a contabilidade das casas e planetas tenho: 6 ares, 4 terras, 6 águas e 7 fogos. SETE casa/planetas em signos de fogo, sendo a maioria em Áries e Sagitário.
Tem muito fogo nesse mapa. Tem muita água nesse mapa. O que falta é terra (a vá nem tinha percebido risos).
A água já estava em processo de aceitação. Mas o fogo, esse vai ser o desafio da vez. Deixar queimar...

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Carlos Drummond de Andrade