Eu voltei a pintar. Voltei não é bem o verbo correto porque de verdade eu nunca tinha feito antes. Antes os desenhos eram em grafite e quando eu tentava colorir, com o lápis de cor, sempre achava que tinha estragado.
Mas achava que me daria bem com a aquarela. Uma vez me disseram isso. Uma vez a muitos anos atrás. E eu só fui tentar agora. E gostei.
Ela compõe com o grafite de um jeito bonito. E ela é fluida e molha. E quando seca, você pode molhar de novo e mexer infinitamente.
Mas geralmente eu não mexo infinitamente. Os desenhos tem tido começo, meio e fim. Fim.
terça-feira, 11 de outubro de 2016
sábado, 8 de outubro de 2016
Sobre árvores, adeus e recomeços
“Você já amou uma árvore? Se amou uma floresta ou uma árvore, sabe que existem árvores que, apesar de tudo o que tenha dado errado, conseguem enganar a todos — e sobrevivem para contar e ensinar sobre seu admirável retorno à vida. É mais uma vez o estopim dourado. Conheci muitas dessas árvores vigorosas nos bosques do norte onde passei a infância. Contudo, naquela época, como ocorre com frequência na vida das mulheres também, as grandes árvores eram repetidamente expostas a riscos por conta de rápidos esquemas de incorporação imobiliária. (...)
Uma dessas árvores ameaçadas que conheci era uma enorme avó, um choupo. Essa árvore específica tinha sobrevivido por vários séculos a todo tipo de intempérie, inundação, congelamento e a todas as criaturas que tentaram corroê-la. Ela era o que nós chamávamos de "árvore da nevasca no verão" porque lançava suas sementes diminutas presas a uma reluzente penugem branca. Elas voavam e flutuavam nos ventos quentes da primavera, gerando uma tempestade de neve fina e transparente. Seria um equívoco imaginar que, por lançar suas sementes em saias cheias de babados, ela fosse frágil. Ela não era. Era uma guerreira. Um dia, porém, mesmo depois de provar seu valor nas batalhas que nunca buscava, mas que vinham confrontá-la diretamente repetidas vezes, e embora continuasse resistindo, ereta e majestosa... bem, um dia ela foi 'descoberta' por um grupo de gente armada de serras de arco e machados. E então, ao longo de algumas semanas terríveis — pois tamanha era sua circunferência, tão profundos eram seu coração e sua força —, sem nenhuma cerimônia, ela foi picada e derrubada. Depois, foi levada embora por um grande caminhão preto com chaminé. Na serraria antiquada, de teto de zinco, ela foi mais "desdobrada" — como se diz nas madeireiras — em madeira comum para estrados de carga e caixotes. E, como ocorre muitas vezes na vida de uma mulher, a conclusão era que ela havia sido derrubada, e que agora esse era o seu fim. E alguns, que tinham outros planos em mente, podem ter dito: "Já vai tarde." Mas... a mulher oculta que cuidava do estopim dourado lá por baixo da terra pensava de outro modo... Imagine um tijolo, de verdade. Agora imagine um enorme choupo vivo, confinado numa casca que tivesse os formatos e tamanhos de milhares de tijolos toscos em linhas ondulantes de cima a baixo, pelo tronco inteiro. Era essa a profundidade com que a casca do choupo estava entalhada — em si uma visão espantosa. Os velhotes que se alojavam entre os emaranhados de fios e mangueiras no posto de combustível disseram que a casca espessa fez com que os primeiros golpes poderosos dos machados saltassem de volta dos cortes e perseguissem os lenhadores pela rua abaixo. Disseram que só a remoção da casca do tronco exigiu sete dias de trabalho pesado. É difícil matar a vigorosa carapaça de um espírito altaneiro. A vida de uma árvore, a vida de uma mulher, não precisava e não precisa ser assim, tolhida e retalhada para abrir caminho para outra coisa de valor duvidoso. Há outros modos de viver sua vida e deixar outras vidas em paz; de se harmonizar, de chegar ao pleno florescimento por toda parte. Minha família vinha de uma tradição camponesa na qual as árvores para corte eram separadas das árvores da floresta. Eles semeavam árvores em áreas demarcadas: algumas para vender, algumas reservadas para o uso da madeira. Mas, as gigantes da Natureza eram encaradas de outro modo... As árvores da floresta não deviam ser derrubadas, pois as grandes árvores eram as verdadeiras guardiãs espirituais do povoado. As árvores guardiãs eram a proteção da aldeia contra o calor do verão. Durante tempestades, elas desviavam a mira do vento. Com seu tronco, seguravam os amontoados de neve, e evitavam que a neve acabasse por soterrar os chalés rurais e pusesse vidas em perigo. As grandes árvores da floresta impediam que grãos soprados pelo vento entrassem pelas mínimas junções nos beirais dos telhados e pelas soleiras das portas. Isso elas faziam apanhando nos seus ramos frondosos a poeira que o vento levantava dos campos. As velhas árvores propiciavam uma felicidade luminosa e calma ao coração de todos os que as viam ou que nelas se encostavam. E assim, as velhas árvores, como os anciãos da aldeia, nunca eram cortadas nem deixadas à míngua. Na antiga tradição da terra natal, se essa árvore da qual estamos falando tivesse tido uma morte natural, "no momento certo da sua própria hora", só então ela teria sido derrubada, caso não tivesse caído sozinha. Do seu tronco, porém, seria tirado um pau de cumeeira, assim como muitas escoras e ripas para forro. A partir daí, haveria uma casa cuja estrutura seria construída com sua madeira. A casa seria construída "ao alcance da visão" das raízes da velha árvore. Isso para que todos pudessem dizer com orgulho: "Está vendo? No final da vida, essa árvore foi derrubada com a devida gentileza. Ela então veio para um lugar bom e próximo sob uma nova forma. Seu amor por nós e nosso amor por ela nunca terminaram. Ela ainda está conosco." Se, em vez de viver no embotamento do mundo moderno — que às vezes pressiona os seres humanos a adotar eficácias a curto prazo, em vez de um planejamento a longo prazo que mantenha viva a generosidade da Natureza —, o grande choupo tivesse vivido na terra dos antepassados, dos seus nós, os velhos sábios teriam esculpido tigelas que acompanhassem os rios do seu veio. As tigelas seriam usadas como recipientes para leite de égua e para pão preto. O pintor de imagens do povoado teria pintado na parede de argamassa caiada da varanda da casa, abaixo do telheiro, um retrato do próprio choupo — para demonstrar que as raízes da casa e as raízes da enorme árvore estavam unidas por baixo da terra tanto quanto a céu aberto. Mas isso era naquela época. E um momento em que algumas pessoas se esquecem de que a Natureza não é um desconhecido, mas faz parte da família. Depois que o choupo foi derrubado, as pessoas tiveram muitos sentimentos a respeito do seu fim — algumas ficaram impassíveis; outras, em número muito maior, ficaram indignadas. Mas a maioria se sentiu desconcertada com a destruição de um ser tão admirável — um ser que na maior parte do tempo fornecia tudo para qualquer um que quisesse qualquer coisa. A árvore avó: o repouso à sua sombra; o brilho das estrelas atravessando sua copa à noite; uma criatura na qual era possível descansar; um conforto no som incomparavelmente tranquilizador do vento nas folhas falantes. Um lugar onde namorados podiam se demorar, um tronco no qual alguém poderia se encostar para chorar, uma copa sob a qual espíritos afins poderiam conversar em paz. No local onde antes ela tocava o céu, havia agora um espaço sinistro, um vazio, uma abertura escura que dava para lugar nenhum. Nem mesmo os arbustos frondosos e as formas de samambaias que viviam perto do chão — esses jamais poderiam compensar a falta da sua torre verde. E, ainda assim, a mulher oculta debaixo da terra cuidava do estopim dourado. Sempre. E sempre... Ao longo do ano, começou a acontecer alguma coisa com aquele enorme cepo de choupo. O que restou da árvore no chão tinha mais de 1,80 metro de diâmetro. Aquele tampo de mesa plano e prateado era grande o suficiente para que quatro mulheres de quadris largos se deitassem nele, lado a lado, sem desconforto. O tempo passava. E passava. Então... teve início o que chamo de "um lento milagre". Do cepo liso sobre o qual a árvore viva um dia se erguera, cresceram 12 rebentos a partir da velha árvore avó. Direto para o alto. Fortes. Ondulantes. Dançando numa roda. Em cima do cepo. Em torno da sua borda... 12 árvores que dançavam. As árvores jovens que cresceram a partir do corpo do velho choupo eram obviamente suas filhas. Na mitologia, uma árvore dessas "com sua prole" às vezes é chamada de "árvore do círculo de fadas"; espíritos que brotam do que parece estar morto... para dançar sem parar na alegria de uma nova vida. Elas não foram semeadas. São evocações. Elas surgem, "as muitas a partir de uma só", daquele único estopim dourado. Na mitologia grega, é Demetér, a mãe terra, que morre quando sua filha desaparece. E Demetér que volta à vida vibrante quando a filha lhe é restituída. Da mesma forma, essa grande árvore: as filhas provêm da raiz mãe mais antiga; elas trazem tudo de volta à vida outra vez. Não à vida estática. A vida que dança. Esse tipo de árvores com "rebentos" ocorre na Natureza, porque a vida nova está armazenada na raiz — mesmo que a massa maior acima da terra tenha sido derrubada, tenha sido levada dali — mesmo que a vida de uma criatura não tenha sido tratada com o devido respeito, ou não tenha sido gerada corretamente — mesmo quando cercada de apatia e indiferença. Mesmo que a carapaça tenha sido partida e destruída. Imagine só: a partir do espaço vazio, voltar não apenas com um novo rebento uma vez, mas com muitos. Independentemente de todas as outras condições, a mulher oculta por baixo da terra cuida do estopim dourado. Agora, com os ventos ousados, as folhas dessas arvoretas altas e lindas estão sempre em movimento, sempre falando com mil reflexos de verde. Se isso não for um milagre, não sabemos nada sobre os verdadeiros milagres. Pois quem será capaz de dizer que alguma coisa querida que foi rasgada e retalhada morreu de verdade? Quanto a qualquer mulher arrasada, quem poderá um dia começar a avaliar que grande vida acabará por brotar dos seus cortes, dos seus ferimentos — da eletricidade empurrada para cima a partir do seu cerne oculto, aquele estopim dourado? Por mais que ela tenha sofrido mutilações profundas, sua raiz radiante ainda está viva, ainda está produzindo e sempre estará à procura de vida significativa a céu aberto."
ESTES, C. P. A ciranda das mulheres sábias. Rocco, 2009.
ESTES, C. P. A ciranda das mulheres sábias. Rocco, 2009.
quinta-feira, 1 de setembro de 2016
Quase setembro e os ipês brancos estão florindo. Inevitável não lembrar de nós e daquelas fotos debaixo de uma de um ipê branco florido, numa dessas noites no meio da semana e a gente rindo das desgraças da vida que naquela época não eram poucas. Vai fazendo 3 anos desde o início da nossa separação física. Da não mais convivência de todo dia, do não mais trabalho coletivo, da ausência do sentimento diário de grupo.
Esse ano por algumas vezes eu pensei se deveria ter voltado pra onde eu sempre quis ir embora. Muitas coisas morreram a partir daí, o medo cresceu feito erva daninha e tomou conta de grande parte de mim. Mas aí eu lembro desse encontro e penso que todas as vezes que eu tentei ser cética, o acaso (ou destino) me esfregou na cara sua força. Esse encontro estava marcado. E talvez o desencontro posterior, tão doído, também estivesse. Mas talvez a gente tivesse que se espalhar. E se encontrar ocasionalmente. E rir mais um pouco das desgraças. E criar mil teorias em duas horas. E comprovar mais umas várias. E lamentar a nossa separação. E concluir que vivemos uns nos outros, pra sempre, de alguma forma, juntos.
Esse ano por algumas vezes eu pensei se deveria ter voltado pra onde eu sempre quis ir embora. Muitas coisas morreram a partir daí, o medo cresceu feito erva daninha e tomou conta de grande parte de mim. Mas aí eu lembro desse encontro e penso que todas as vezes que eu tentei ser cética, o acaso (ou destino) me esfregou na cara sua força. Esse encontro estava marcado. E talvez o desencontro posterior, tão doído, também estivesse. Mas talvez a gente tivesse que se espalhar. E se encontrar ocasionalmente. E rir mais um pouco das desgraças. E criar mil teorias em duas horas. E comprovar mais umas várias. E lamentar a nossa separação. E concluir que vivemos uns nos outros, pra sempre, de alguma forma, juntos.
segunda-feira, 22 de agosto de 2016
Desenlace
Ele desamarrou a corda e disse:
- Vai. Você precisa ir.
- Ir? Por que? Eu não quero ir.
- Você tem que ir. Eu também.
- Mas a sua corda ainda tá amarrada. Tá vendo?
- Tá. Mas eu vou desamarrar. To vendo aqui como.
- Eu não quero ir sozinha. Não consigo. Vou ficar aqui esperando você. Eu posso ajudar.
- Você não pode me ajudar. Eu não posso te ajudar. Você tem que ir agora.
Ela hesitou. Tinha muito tempo que não enfrentava o mar sozinha. E a corda dele parecia muito bem amarrada. Reparando bem os nós estavam bastante apertados. Ela era uma especialista em desatar nós, até daquelas correntinhas finas que se embromavam nas gavetas. Dos novelos de lã do tricô da mãe. Era um passatempo. Uma habilidade. E se ele não conseguisse sozinho? Aquele nó com toda certeza era bem difícil de desatar. Resolveu então deixar pistas. Escreveu cartas, deixou vestígios. Muitas dicas sobre como soltar nós. E foi jogando tudo no barco dele. Mas o barco dela ia aos poucos se afastando, já que em meio a preocupação de fabricar as pistas, ela esqueceu de amarrar seu nó de novo no cais. Então teve que arranjar outros meios de enviá-las. Colocou cartas em garrafas e quando as garrafas não pareciam mais seguras, pois a distância aumentava, arranjou ajuda com golfinhos e tartarugas mensageiras. Tinha muito medo de que ele ficasse preso ali, sem conseguir soltar o maldito nó. Pra sempre.
Com o tempo ela foi tomando gosto pela escrita. E o barco foi se afastando, quase não dava pra enxergá-lo. Na verdade não dava. mas ela sabia que ainda estava lá. Ele mandava notícias de quando em quando pelos mensageiros. Elas não eram muito animadoras. Pelo que parecia ele tinha conseguido se enrolar ainda mais. E começava a ter noção da dificuldade que seria a empreitada. Ele tentava soltar mas acabava com as mãos machucadas e desistia.
Ela não sabia como ajudar. Parece que ele não estava conseguindo decifrar as pistas. Mas como? Estava tudo ali, tão explicadinho. Como ele não entendia?
E conversando com os golfinhos e as tartarugas que traziam as cartas, descobriu que os nós são diferentes pra cada pessoa. As suas instruções não serviam pra ele. Ele só havia conseguido desamarrar o nó dela, porque não havia nó. Era um lacinho, desses que puxando se dissolve facilmente. As pistas eram então inúteis para isso. Mas pensando bem, poderiam ser muito preciosas depois que ele descobrisse como se soltar, porque contavam muito sobre como viver no mar.
Assim seu coração foi ficando mais calmo. E a calma fez com que ela percebesse como o mar é bonito e quantas descobertas ela fez.
Agora já não mandava cartas, mas anotava tudo que achava interessante. Um dia as ondas poderiam trazer aquele barco e tudo estaria ali, documentado, pra ele ler quando for a hora.
quarta-feira, 10 de agosto de 2016
Estava eu aqui analisando meu mapa astral - coisa que ando fazendo muito ultimamente - e cheguei a uma conclusão curiosa.
Eu que achava que era muito mais ar que qualquer outro elemento descobri que apesar de eu ter sol e ascendente em signos de ar, fazendo a contabilidade das casas e planetas tenho: 6 ares, 4 terras, 6 águas e 7 fogos. SETE casa/planetas em signos de fogo, sendo a maioria em Áries e Sagitário.
Tem muito fogo nesse mapa. Tem muita água nesse mapa. O que falta é terra (a vá nem tinha percebido risos).
A água já estava em processo de aceitação. Mas o fogo, esse vai ser o desafio da vez. Deixar queimar...
Eu que achava que era muito mais ar que qualquer outro elemento descobri que apesar de eu ter sol e ascendente em signos de ar, fazendo a contabilidade das casas e planetas tenho: 6 ares, 4 terras, 6 águas e 7 fogos. SETE casa/planetas em signos de fogo, sendo a maioria em Áries e Sagitário.
Tem muito fogo nesse mapa. Tem muita água nesse mapa. O que falta é terra (a vá nem tinha percebido risos).
A água já estava em processo de aceitação. Mas o fogo, esse vai ser o desafio da vez. Deixar queimar...
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
A Flor e a Náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade
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